Terça-feira, 14 de Julho de 2009

Histórias curtas e concretas!

N'A História Devida, costumamos dizer que temos apenas uma regra: as histórias devem ser curtas e concretas. No entanto, por vezes, recebemos textos demasiado longos e, para os podermos ler na rádio, temos que editá-los. Foi o que aconteceu recentemente com uma história do nosso fiel ouvinte e contador de histórias Fernando Faria. O texto chama-se Ó da Guarda e teve que ser alterado nalgumas passagens. A razão foi simples: não queríamos deixar de lê-lo na rádio; ou melhor, considerámos mesmo que este texto não podia deixar de ser lido na rádio! Seja como for, publicamos aqui a sua versão completa, alertando, mais uma vez, todos os ouvintes para a nossa regra: histórias CURTAS (3500 caracteres, incluindo espaços, no máximo) e concretas.

 

 

Ó DA GUARDA!     

 

      «Põe-te a pau, que os feijões verdes estão aí em cima», avisou-me a ti Amélia Rola, com um sorriso entre o matreiro e o enigmático, respondendo à minha ofegante saudação da janelita onde passava o dia a coscuvilhar com as vizinhas e transeuntes.

     Não liguei nenhuma ao aviso, apesar da gravidade objectiva do conteúdo da mensagem. Adiante se saberá porquê.

     Os «feijões verdes» eram, nem mais nem menos, os componentes da patrulha da GNR que, a ser verdadeira a informação da ti Rola, por ela teriam acabado de passar, caminhando pachorrentamente um de cada lado da estrada numa daquelas rondas que, de tempos a tempos,  faziam pela freguesia, supostamente destinadas a assegurar a ordem e o cumprimento da lei, mas que, na prática, apenas serviam para pôr em desassossego os mais inofensivos e pacíficos utentes da via pública, como eram, por exemplo, os condutores de carros de bois e os ciclistas. «Aí em cima» era uma curva apertada onde os ditos agentes da autoridade costumavam emboscar-se e se compraziam a surpreender, com autuações, os incautos condutores desencartados ou algum boieiro cujo carro não ostentasse a chapa oval de esmalte com a matrícula municipal.

     Se o alerta proviesse de outra pessoa que não a Rolinha – assim era conhecida a ti Amélia, na gíria juvenil – era quanto bastava para eu dar meia volta à bicicleta e regressar urgentemente a casa: para mim, os guardas eram os seres vivos mais temíveis que conhecia, e ser caçado por eles era a última coisa que desejava. Em parte, por culpa da minha mãe que, desde tenra idade e talvez por falta de tempo ou paciência para mais pedagógicas e fundamentadas exortações, costumava persuadir-me a não transpor os limites, ameaçando-me sumariamente com os guardas. Mal adivinhava diabrura, lá vinha o descarado aviso: «Olha que chamo os guardas... Parece-me que os vi passar agora mesmo...» Como se aqueles prestimosos zeladores da res publica estivessem sempre por perto, à mão de semear.  Santa candura a minha, que tão facilmente acreditava!...

     Mas, para a formação de tão negativa imagem dos republicanos gendarmes, contribuía também, e em muito, o intimidante aparato com que tais figuras se apresentavam perante os pacatos e geralmente pacíficos habitantes da minha aldeia, onde os delitos mais graves, tirando um ou outro furto de criação ou de cereal pela calada da noite, seriam porventura a venda ilegal de vinho a ramo ou a falta de vacinação dos cães. Na verdade, e que me lembre, só em armamento, os agentes da GNR pavoneavam-se com nada menos que uma Mauser e respectiva baioneta, uma pistola suspensa do cinturão e, do lado oposto, o casse-tête. Arsenal bélico, este, exposto sobre o pesado fardamento esverdeado, ornamentado com nédios botões de latão e acessórios de couro. Dir-se-ia que os militares, em vez de patrulharem uma pacata aldeola, se iam aventurar adentro das trincheiras inimigas fervilhantes de metralha.

     Está  assim mais que justificado o paralisante pavor que eu tinha dos guardas. Nunca ninguém me explicou, nem tão pouco soube eu deduzir, que o copioso armamento tinha, acima de tudo, um papel dissuasório; mais do que uma vez cheguei mesmo a imaginar um dos agentes de joelho no chão a apontar a espingarda a algum catraio desencartado que se atrevesse a desobedecer à ordem de parar, alvejando-o como a um coelho....

     Apesar de quanto fica dito, e como comecei por afirmar, resolvi não dar crédito ao aviso da Rolinha. E por dois motivos: o primeiro era por não ser quinta-feira – dia da feira semanal – e, por isso, altamente improvável a presença daquelas aves de rapina na freguesia; o outro, não menos importante, era o facto de a ti Rola ser useira e vezeira a enganar jovens ciclistas desencartados como eu, dizendo-lhes que a guarda estava por ali, e depois ficar a rebolar-se de riso, ao vê-los fugir apavorados.

     Na verdade, ela já uma vez me ludibriara perfidamente, levando-me a inverter precipitadamente a marcha quando me dirigia a um importante jogo de futebol, no preciso dia da inauguração do campo... Para além da perda do espectáculo, ainda caí, na fuga, esfolando um braço de alto a baixo. A bruxa ainda teve o desplante de me atirar, no dia seguinte, escancarando os dois únicos dentes de morsa que lhe sobravam: «Então, ontem sempre viste os feijões verdes?... Caíste que nem um patinho!...» Pois caíra, e duplamente: na esparrela e da bicicleta!... Malvada tia Rola!

      A talho de foice, e a propósito de logros e fugas à guarda, recordo uma outra vez em que, ao avistar ao longe na estrada umas fardas cinzentas, fugi a toda a brida, enfiando com a bicicleta por um bastio. Fi-lo, porém, tão desastradamente que acabei por me precipitar, juntamente com o pesado velocípede, num enorme silveirão. Quando, instantes depois, iniciava a minha luta contra as silvas para me libertar, vi com espanto chegarem junto a mim os tais detentores das fardas cinzentas que, com um sorriso matreiro, me estenderam os braços para me resgatar do silvado. Arregalando os olhos, constatei, com grande alívio espiritual (não físico, devido aos arranhões), não estar à mercê dos temíveis carabineiros, mas ter pela frente dois pacatos e inofensivos cantoneiros de estrada...

     Mas, voltando à Rolinha, não liguei peva – pelos invocados motivos – ao seu aviso, e prossegui na minha penosa pedalada, ladeira acima, bamboleando o meu corpo franzino sobre a enorme pasteleira do meu pai.

     Mal alcancei, ofegante, o cume do curto mas severo declive, o coração quase me saltou do peito: assim que dobrei a tal curva crítica, dei com os olhos na patrulha. Lá estavam eles, de pé, saboreando a sombra fresca de uma oliveira, mas atentos à estrada. Apesar de me ter apercebido de que me viram, não pensei duas vezes e dei meia volta à bicicleta, invertendo a marcha. Entre esconder-me quanto antes e pedalar célere para casa, optei pela primeira solução. Assim, meti pelo primeiro quintal que encontrei, suspirando por um buraco onde me esconder. Providencialmente, vi, num recanto do quinteiro, uma retrete, das que se usavam naquele tempo, feitas de tábuas toscas e sem tecto, que logo elegi como esconderijo; não porque estivesse longe das vistas, mas porque pensei que os guardas, se viessem no meu encalço, não iriam ter a indiscrição de espreitar para dentro de um compartimento, digamos, tão… íntimo. 

     Acocorei-me, pois, sobre a tábua da «meditação», como se aliviasse os intestinos e aguardei, ansioso e ainda ofeguento. Porém, era o meu dia não: pouco tardou até pressentir uma sombra a aproximar-se do meu reduto mal cheiroso. Logo a seguir, apareceu um rosto, encimado por um bivaque, a espreitar por uma fresta, interpelando-me, com um sorriso malvado e com elevada concentração de mofa e escárnio: «Olá, menino; deu-te a soltura? Acaba lá depressa que queremos falar contigo!...»

     Fernando Faria

     Sintra

tags:
Publicado por Produções Fictícias às 09:12
Link do post | Comentar | Adicionar aos favoritos
1 comentário:
De Augusto Küttner de Magalhães a 17 de Julho de 2009 às 01:07
De facto tanto nas televisões, como nas radios e até em jornais, é necessário não ocupar muito espaço, logo abreviar ou pedir qe sejamos mais concisos, o que por vezes estraga a mensagm, o que queremos verdadeiramente escrever, contar, opinar!

Vejo mais este aspecto, como “um problema” na televisão e na radio que nos jornais, mas em todos é necessario ser mais compactado. Com alargamento/ espaço para mais intervençoes, mas por vezes cortando algumas necessariamente mais alongadas!!

Aqui foi dado um passo, para ajudar a emendar um problema real.....do nosso mundo actual....

Comentar post

Pesquisar

 

A HISTÓRIA DEVIDA

Todos os Sábados, por volta das 22h35, no Canal Q.



Envie as suas histórias para: historiadevida@gmail.com ou para

A História Devida - Produções Fictícias – Travessa da Fábrica dos Pentes, nº 27, R/C 1250-105 Lisboa

Links

HISTÓRIA DEVIDA NA PÚBLICA

Veja aqui todas as Histórias Devida editadas na revista Pública.

Arquivo

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

blogs SAPO

subscrever feeds